domingo, 28 de junho de 2009

MAIS UMA TENTATIVA DE CRÔNICA


DIANTE DE SI MESMA
Oswaldo Antônio Begiato

Só, diante de si mesma, se olhava longamente no espelho que a lançava em um mundo feito de inversões. Ao fundo, a cama desarrumada. Nas dobras do lençol se ajeitavam os desarranjos de uma noite de insônia e solidão. As cortinas trepidavam com a brisa; despertavam desesperadamente recordações indesejáveis em sua alma tão feminina e tão sensível e tão distante.

Uma réstia de sol iluminava o porta-retrato fingidamente esquecido sobre a cabeceira. No porta-retrato o corpo do homem não permitia o abraço; inertes, os olhos denunciavam uma presença intocável. Insensível. Uma imagem plana e sem movimentos, onde apenas o tempo se movia ali, deixando na face única e máscula um amarelo indelével.

No ar pairava o perfume que os anos diluíram, mas a memória, teimosamente, não. Nem se diluiu a ilusão de sentir o leve pousar da mão nos cabelos ainda castanhos, ainda que o pouso se fizesse breve. Breve como um suspiro. Carinho frágil, sempre negado.

O espelho retratava tudo mudo e complacente. Havia nele um vácuo inconquistável. Havia na mulher um vácuo inquestionável. Uma espécie de porta se abria sem muitos ruídos, mas que não permitia a entrada do futuro nem permitia a saída do passado. Prisão perpétua.

Que falta lhe faziam agora a formatura do filho que nunca nasceu, a missa de bodas de prata que nunca aconteceu, o abraço do neto que nunca veio... Os vácuos se multiplicavam dentro do espelho. O Espelho era outro mundo. Outra vida. Outra essência. Nos vácuos que se sucediam, outra história acontecia, ainda que somente no pensamento.

Porém, o espelho também era uma imagem plana e sem movimentos que se dobrava ao inverso para amenizar a crua realidade do tempo que passou, sem deixar muitos vestígios dos sonhos jamais formatados, e tentar apagar as dores e as imagens que se perpetuam na retina cansada de olhar os inversos.

Em vão. O exagero da complacência não permitiu ao espelho notar nele a imagem inversa dos fios brancos de cabelo abraçados à escova.

Abraçados teimosamente à escova posta diante dele.

4 comentários:

Aninha disse...

Wado! Um texto espetacular este!
Impecável em suas formas e tristemente emocionante, nos toca profundamente a alma. Aqui vejo a excelência de teu escrever e poetar, a cada dia mais. Parabéns!
Carinho,
Aninha

Aninha disse...

Posso fazer uma sugestão? Faça um novo blog só para as crônicas.
Aposto que agora não vais parar mais! bjs

maisriana disse...

De repente eu parei pra pensar que sim, eu realmente quero ter filhos. Não sei se estou preparada (nem sei vou estar um dia) pra sentir a dor da solidão... sozinha! Linda, linda, maravilhosa a crônica! Por favor, escreva mais! (sem deixar de lado suas poesias, que também adoro!).

Beijo, Mariana.

Silvia Kerner disse...

Amadooooooooooo... que coisa mais linda!! Agora vc me colocou pra refletir sobre minha vida, inhas experiências de vida, meus cabelinhos branquinhos q estão aparecendo ... Vc é d +++ !!!
Parabéns!!!
Beijos e saudades