QUANDO A
CONFISSÃO NÃO SE FAZ NECESSÁRIA
Sou filho
de Milton, engenheiro civil prático, com documento e tudo e que carregou o
mundo em sua carcaça velha e alquebrada e de dona Regina, rainha e benzedeira inconsciente
de quebranto, erisipela, olho gordo e muito mais coisas que a medicina não
consegue alcançar, mas os mistérios sim. Eles se amaram com um amor que nunca
se viu em tempo algum.
Vim aqui
para pedir perdão.
Já fui monge
por cinco anos. Fiquei longe de pai e de mãe, de irmãos e de amigos. Fiquei
longe até de mim mesmo. Perdi minha infância. Perdi as guias e os guias todos.
Perdi a ilusão.
Comecei a
perder a fé. Não em Deus, mas em mim, um caracol sem saída, envernizado até os
cotovelos.
Já fui ver
avião pousar e levantar voo no aeroporto Viracopos. Meu padrinho me levou.
Tive a
sensação de que um dia poderia voar. Nunca saí do chão árido. Como o pó que o
diabo amassou nunca saí do chão.
Andei de
trem. Na velha e romântica Sorocabana. Acreditei em sacis. Acreditei em
cegonha. Só mesmo em Papai Noel nunca acreditei. Nunca vi vestígios dele na
minha casa em noite de Natal.
Uma única
vez andei a cavalo. Montei um cavalo manso como lobisomem na lua nova.
Caí e temi
jamais sentir minhas vértebras. As vértebras senti, mas coragem, nunca mais.
Daí nasceu um sonho que nunca realizei; ter um cavalo e uma charrete.
Já fui, em
um final de ano, passear na Avenida Paulista. No Natal rico do Menino Jesus
pobre.
A beleza
era tanta que o pouco de fé que tinha me restado, perdi. Mas fé firme mesmo era
a minha fé de antes do caracol. Foi-se como se vão as ilusões todas.
Já tomei
chopp nos bares de Copacabana, à noite. Sem muito dinheiro no bolso, mas com os
olhos cheios de novidades. Lá, na conversa solitária da madrugada, aprendi que
toda prostituta tem um filho. Se não de verdade, um inventado que sirva para
comover os clientes.
Já venci,
com um barco, as águas do rio Paraguai, onde suas margens eram mais distantes e
seu leito mais infinito. Penso que nele fui batizado. Ouvi uma voz me chamando
de filho e que em mim tinha colocado todas as complacências. Pensei ser a voz
de meu Pai. E era mesmo. Se não era, fingi que era.
Já fui à
minha própria formatura, enfiado dentro de uma beca. E depois fui à formatura
de meu filho. Agora quem usava beca era ele. Depois não fui mais a formatura
alguma, e não sinto falta alguma delas.
Tive
alguns amores e muitos dissabores. Tantos desenganos! Já me casei. Casei virgem, diante de um
sacerdote suspeito. Não valeu a pena. Nem um pouco.
Eu tinha
que mutilar mais a alma e casar mais vezes. Cometer mais pecados. Chorar mais. Chorar agora. Chorar ontem. Chorar sempre.
Já implantaram
em mim quatro pontes no coração. Queria que por elas passassem novas caravanas,
novos passos, novos amores. Por baixo queria que passassem novo sangue. Nada
passou, porque coloquei nelas barreiras intransponíveis. As barreiras trouxe dos
meus tempos de crente.
Inventei
dois mil caminhos, nenhum me levou a lugar algum. Pelo meio dos caminhos foram
ficando violinos, letras, pincéis e cinzéis. E ficaram muitos amigos. Voltei de
onde sai e por aqui finquei meus calos todos. É onde vou morrer.
Mas antes
quero me confessar porque espero morrer com os meus pecados perdoados, embora
isso já não tenha mais importância diante de tantos pecados que vi pela vida
afora sendo cometidos em nome da Santidade e sob o manto protetor dessa mesma
Santidade.
Os meus
pecados cometi-os em nome da boemia; em nome da poesia, sob o manto protetor da
noite. Acho que isso, por si só, merece o perdão. Espero.
4 comentários:
Meu querido Amigo,Poeta sempre,mesmo rasgando a Alma numa maravilhosa Crónica que me emocionou às lágrimas!
Como ñ perdoar o Poeta?
Como ñ perdoar o Homem,se aqueles que nos julgam neste Mundo pecam mais e em nome de coisas tão sérias que nem cumprem?
Rendi-me e devorei as linhas e parei nas pontes pq penso que têm nomes.
Nomes caríssimos ao Ser fantasticamente despojado da vaidade humana!
Que maravilha de texto.
Beijo.
isa.
Oi!
Feliz vida! Beijo
Saudades!
Olá Poeta!
Gostaria que você sentisse o meu abraço e minha admiração!!!
Texto emocionante, tocou fundo o coração!
Beijos com carinho, Lelê.
Tenho acompanhado seus textos, e esse como todos os outros, muito me emociona. esse tom confessional que traz a tona o sentimento do poeta, e deixa transparecer sua alma, merece todo o perdão, sim, e um obrigado pela inspiração.
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